"Desabafo de um oitentão"
Como dizer adeus a uma Vida que está terminando? O habitual, o de praxe, o normal, é esperar – indeterminadamente – a morte, por sua vez, decorrente de uma doença ou de um acidente. Entendo que seja considerado estranho, ou mesmo patológico, que um ser humano, em algum momento, cometa suicídio com plena consciência dos motivos e das circunstâncias que o levaram ao ato.
Para quem fui – e continuo sendo –, “plena consciência” é uma expressão ambígua, até irônica, dada a participação do inconsciente em todos os atos, especialmente neste final, a passagem da Vida para a morte. (“O inconsciente não conhece a morte nem acredita nela”).
No meu caso, deixarei a vida sob protesto pois a amo. (Morte? Sou terminantemente contra). Posso dizer que não sou eu quem me afasto da Vida, mas que é a Vida que, pérfida e obcecadamente, se afasta de mim. Vivo essa situação com tranquilidade, sem angústia, sem a sensação de cansaço ou de tédio.
Atesto o progressivo e irreversível declínio de minhas capacidades vitais. Consultei muitos especialistas e, sem objeções, submeti-me a diversos exames. O acúmulo de diagnósticos sobre minha condição vascular, respiratória, renal, locomotora, neurológica, dermatológica etc. foi mais ou menos!
Meus médicos tentaram, reiteradamente, me encorajar: “Sim; seus órgãos estão mais ou menos, mas não esqueça que, com a sua idade, maior que 80 anos, pode continuar a viver, ainda que não haja meios para melhorar o que está falhando”. Sigo fielmente, ao pé da letra, o que me foi prescrito. Meus médicos são todos excelentes.
Não posso deixar de aceitar os veredictos da ciência. Reconheço que, em muitos aspectos, minha atual condição é privilegiada: não tenho dores nem passo por processos progressivos que preveriam o momento da minha morte. É verdade que meu corpo e minha mente (permitam-me o dualismo), que estiveram a meu dispor estas décadas, agora me pedem para inverter a relação: sou eu quem devo me ocupar deles. Meus amigos se despedem de mim com um “cuide-se” porque sabem da precariedade da Vida nesta idade – ainda mais com as minhas mazelas.
Amigos meus: eles. Muitos, maravilhosos, afetuosos, sempre presentes, dispersos em vários países e dispostos a me ajudar, como também sou para ajudá-los quando preciso. Nenhum estará junto a mim no momento final; encarrego-me de enviar esta carta de despedida a eles. E à minha família: Cléa, minha filha, herdeira universal de meus bens – conforme meu testamento assinado em 2020 –, minha irmã, minhas sobrinhas e seus descendentes. Creio ter feito e deixado o suficiente para que possam resolver suas necessidades materiais de acordo com seus próprios critérios e valores.
Em poucas palavras: não estou solitário, “deprimido”, tampouco melancólico. Viverei meus dias até que esta carta, ainda sem data, seja enviada; seguirei de acordo com a regra que me impus, principalmente depois do início da pandemia em 2020: Carpe diem.(curta o momento)
Desde então, tomei muitas medidas para evitar o contágio, mas não deixei de viajar tanto quanto pude. Compareci a óperas, exposições, concertos, filmes, templos, conferências presenciais etc., conforme tive vontade e oportunidade, compreendendo a posição, ainda que pouco sensata, dos muitos que, por toda a parte, deixaram de viver para viver.
Com frequência me senti imprudente, porém, a longo prazo, passei a acreditar que tive razão, sem negar o bom senso de quem optou pela proteção máxima proporcionada pelo isolamento. Sabia que, dada a minha idade e a minha vulnerabilidade, não sobreviveria à infecção, embora, em virtude ao caso, não me importasse muito em morrer de acordo com o lema de Horácio, pois já estava “amortizado”: nada poderia reclamar da Vida, nada a Vida poderia reclamar de mim...
Se partir hoje ou amanhã,Deus tem a minha Vida nas mãos!
assinado:senhor X.
Enviado por Maria Augusta da Silva Caliari em 14/03/2023